Entrevista com Fernando Marcelo Mendes Estevão, director de Educação Ribeirinha no Baixo Madeira

Fernando Marcelo Mendes Estevão es Professor Pesquisador rural ribeirinho. Mestre em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Mestrado e Doutorado Profissional (PPGEProf) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Campus Porto Velho - (2025). Graduado em Educação Física pela Faculdade Metropolitana de Porto Velho, Rondônia (2011). Especialista em Administração Escolar pela Faculdade de Educação Paulistana (2022). Especialista em Supervisão, Inspeção e Gestão Escolar pela Faculdade de São Marcos (2023). Integrante do Grupo de Pesquisa Multidisciplinar em Educação e Infância (EDUCA). Possui experiência de mais de 14 anos atuando na Educação Rural Ribeirinha em comunidades da região do Baixo Madeira em distritos de Porto Velho, Amazônia rondoniense. Membro do Conselho de Acompanhamento Social do Fundeb (CACS -FUNDEB / MUNICIPAL), representante dos diretores das Escolas Rurais, eleito para o mandato (20023 - 2026). Atualmente é Gestor Escolar e Professor da Escola Municipal de Ensino Fundamental Francisco Braga, localizada na Reserva Extrativista Lago do Cuniã (RESEX).
Como é o contexto geográfico, social e logístico da escola e da região onde você trabalha?
A Escola Francisco Braga está situada na Reserva Extrativista Lago do Punhão, uma área federal dentro do Baixo Madeira — região que se estende do distrito de São Carlos até Calama, divisa com o estado do Amazonas. Trata-se de um território marcado por biodiversidade extrema, por relações comunitárias tradicionais e por uma logística de acesso extremamente complexa.
O deslocamento até a escola varia conforme a estação. Na época da seca, acessamos por estradas de terra combinadas com trechos fluviais. Já no inverno amazônico as estradas desaparecem, literalmente, sob a água, e o único meio de acesso passa a ser a navegação, muitas vezes por longos trajetos de até 140 km. A região abriga uma fauna abundante: estima-se entre 50 e 60 mil jacarés apenas na reserva, além de onças e cobras que fazem parte do cotidiano. Esses elementos tornam o percurso rotineiro, mas também perigoso.
A distância física se soma à distância social. Muitos estudantes são filhos de extrativistas, pescadores e agricultores familiares. São crianças que crescem em um ambiente de grande força cultural, mas com pouco acesso a políticas públicas contínuas. É nesse contexto que a escola se torna um polo de convivência, apoio e formação.
A escola abriga diferentes modalidades educativas. Como funciona essa estrutura multietapas?
Embora seja oficialmente uma escola municipal dos anos iniciais (1º ao 5º ano), a Francisco Braga funciona como um verdadeiro complexo educacional rural. Pela manhã, atendemos os anos iniciais do ensino fundamental. À tarde, recebemos os estudantes do Projeto Ribeirinho, que atende do 6º ao 9º ano e opera como extensão da Escola Ribeirinho Monteiro Brasil. Além disso, o prédio abriga uma extensão da escola estadual que oferece ensino médio por mediação tecnológica.
Essa coexistência de três instituições num único espaço físico exige articulação constante. Precisamos conciliar calendários, tempos de aula, espaços compartilhados e necessidades pedagógicas distintas. A gestão passa a ser, ao mesmo tempo, administrativa, pedagógica e comunitária, porque tudo envolve negociação entre município, estado e comunidade local.
O Projeto Ribeirinho funciona na lógica da pedagogia da alternância: professores passam 15 dias na comunidade, ministrando aulas intensivas, e depois retornam à cidade, sendo substituídos por outro grupo. É um arranjo que busca garantir acesso a professores habilitados em todas as disciplinas, apesar da dificuldade de fixação de profissionais na área rural profunda.
Já o ensino médio por mediação tecnológica funciona por teleaulas. É uma solução possível, ainda que limitada em interação, para assegurar que os jovens não precisem abandonar a comunidade para continuar os estudos.
Quais são os principais desafios da gestão escolar na realidade ribeirinha?
O primeiro desafio é estrutural. A escola é classificada como categoria C, com cinco salas de aula. Isso significa que, por legislação, não temos direito a vice-diretor, orientador pedagógico ou supervisor escolar. Na prática, exerço simultaneamente todas essas funções. Já tive, inclusive, situações de assumir turmas multisseriadas — cinco séries dentro de uma mesma sala — devido à ausência de professores.
Outro desafio central é o pedagógico. Muitos alunos chegam ao 1º ano sem ter frequentado a educação infantil, o que gera uma defasagem inicial profunda. Durante a pandemia, as dificuldades se agravaram: como o acesso digital era praticamente inexistente, os estudantes receberam apenas atividades impressas, o que resultou em dois anos de aprendizagem muito fragilizada.
A realidade socioeconômica pesa igualmente: diversas famílias são compostas por pais analfabetos ou com escolarização mínima. É preciso construir vínculos, ressignificar expectativas e trabalhar com metodologias que respeitem o tempo cognitivo das crianças ribeirinhas. Comparar o desempenho desses alunos com os da área urbana, que tiveram pré-escola e maior acesso a estímulos, é injusto e não considera as desigualdades estruturais.
Por fim, há o desafio humano: manter professores motivados, garantir condições de permanência e lidar com o desgaste emocional que o isolamento e a sobrecarga produzem. É gestão, mas também cuidado.
Como é a permanência dos professores na comunidade e como vocês lidam com as condições de trabalho?
A maioria dos professores reside oficialmente em Porto Velho, mas permanece na comunidade durante toda a semana. Isso reduz custos com transporte, que é caro e demorado, e permite maior vínculo com os estudantes. Para tornar essa permanência possível, construímos — com apoio comunitário — uma casa de apoio com três quartos, sala e cozinha. Antes disso, os professores dormiam em salas de aula, sem privacidade e em condições precárias.
Hoje, entre quatro e cinco docentes usam o alojamento. Esse espaço é fundamental para atrair profissionais da área urbana, já que o isolamento geográfico, os riscos naturais e a imprevisibilidade climática afastam muitos candidatos. As condições de trabalho melhoraram, mas ainda são desafiadoras: falta rede de apoio pedagógico, a gestão acumula funções e a logística consome tempo e energia.
Mesmo assim, há um senso de missão. O professor que aceita trabalhar no Baixo Madeira geralmente é alguém que entende que seu trabalho tem impacto direto na permanência do aluno na escola e em suas oportunidades futuras.
O que te motiva a continuar e qual o significado de trabalhar com educação ribeirinha?
Trabalhar na escola rural, especialmente na Amazônia profunda, é uma experiência única. Os desafios são enormes, mas é precisamente isso que dá sentido ao trabalho. Aqui, a escola transforma vidas de maneira direta. A educação abre horizontes para crianças que vivem a dezenas de quilômetros da cidade e cujas possibilidades de futuro dependem, muitas vezes, de uma presença docente consistente.
Uma das experiências mais marcantes foi acompanhar o percurso de uma ex-aluna que conseguiu concluir uma graduação. Esse tipo de conquista mostra que cada esforço — cada travessia de voadeira, cada noite longe da família, cada turma multisseriada — vale a pena.
Costumo dizer que ser professor na escola ribeirinha é um ato de plantio. Plantamos sementes sabendo que o terreno é difícil, que a colheita é lenta e que as intempéries são muitas. Mas, quando os frutos aparecem, eles transformam não apenas o aluno, mas toda a comunidade.
Também deixo um convite: conhecer o Baixo Madeira é compreender uma Amazônia que raramente aparece nas manchetes. É um lugar simples, acolhedor e profundamente humano. É ali que, apesar das distâncias, a educação pulsa com força.
Nonato Assis de Miranda
Universidade Municipal de São Caetano do Sul



